sexta-feira, 26 de maio de 2017

Concrecoisa Vida excitada


Birigó era revolucionário.

Começou sua atuação política na extrema esquerda, depois foi para o centro e em seguida para a direita.

Zirino, seu irmão, era pacato.

De uma hora para outra ingressou num movimento social de direita, depois migrou para o centro e acabou atuando numa célula de extrema esquerda.

Em casa, os dois diziam para mamãe Donetita que a vida era uma experiência de transformação que começa lagarta, vira crisálida e morre em borboleta.

Dona Donetita riu muito da militância política dos filhos e deixou cada um de queixo caído quando confessou que era a puta mais cobiçada do bordel da Vila dos Prazeres.

O segredo da vida, dizia hoje a velhinha, era a excitação da alcova.

Já que a mãe estava falando de um passado jamais revelado, Birigó e Zirino quiseram saber como ela se comportava na política.

– Meus filhos, minha política é fazer gostoso, não importa se é esquerda, centro ou direita. No fundo de tudo isso, eu sei que todos vivem em busca da excitação do poder e o meu poder é a política do prazer.

No dia seguinte, Birigó e Zirino ingressaram no Partido Anarquista.   

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Concrecoisa Rua-morada


O frio chegou mais cedo.

Um cantinho qualquer da rua era a morada que precisava.

Eu não tenho bens materiais.

Mas tenho dignidade.

A barriga pede um pedaço de pão.

O outro que caminha ao meu redor é a minha solidão.

Eu sou a multidão e não sou ninguém, para o outro.

Eu sou a rua.

Eu sou Cida.

A rua é Dão.

Eu na rua sou invisível.

Uma sombra da sociedade.

Me casei com a rua.

Eu-rua.

Cida-Dão. 

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Concrecoisa Medo


Siriel era medroso, desde pequenino.

Velhinho, contava rindo pelos cotovelos que tinha até medo do medo.

E foi escavando as narrativas soterradas nas camadas da memória de mais de nove décadas que ele acabou ficando sem medo.

E dizia bem alto, gozando com a cara dos outros...

– Zulina era da rua e tinha medo da rua.

– O policial Miridó corria do ladrão, tudo por causa do medo de tomar um balaço na fuça.

– A violência deixou Bitutu com medo multiplicado.

– O padre Lionilton tinha medo do falso cristão.

– Pertonino, que morava em situação de rua, fugiu para o mato, isso porque ficou com medo da cidade grande.

– Jupinaraci, a decana do bordel mais visitado da cidade, tinha medo de amar o cliente.

– Zé do Canhão, especialista em armamento, tinha medo de estourar uma guerra civil no Brasil.

– O cauteloso Galitanizo tinha medo de arriscar na vida.

– Viciado em analgésico, o médico Diritanoel acabou morrendo de dor.

Para Siriel, o medo de sofrer era o despertador para estancar o medo em si.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Concrecoisa Alone


Zigmon estava com 65 anos e morava sozinho numa ilha perdida na imensidão do oceano Atlântico.

Certo dia, ele encontrou uma garrafa boiando na praia.

Dentro, uma mensagem dizia:

Eu estou sozinho
Mas gostaria que você estivesse aqui
Você é mais do que uma mulher
Você é o amor total

Repentinamente, Zigmon entrou em estado de riso.

Aquela mensagem, incrivelmente, era dele para o primeiro amor de sua vida.

Foi jogada no mar quando ele estava com 15 anos e de passagem por Miyako, no Japão.

Achar aquela garrafa fez Zigmon pensar que ficar sozinho só é possível quando a alma deixa o corpo.